sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Chuva

Por que será que existe relação entre as condições do tempo e os sentimentos? Por que quando chove seguidamente, nos preenche essa sensação de vazio, nostalgia, desânimo, falta, uma certa tristeza? Mesmo quando estamos bem, num lugar agradável, num bom momento, quando a chuva a vem pra ficar, esses sentimentos nos invadem lenta e disfarçadamente. É como o sentimento logo após acabar uma relação. Não importa o quanto você estava decidido a fazê-lo e todos os motivos que tivesse para terminar, sempre, nas horas exatamente pós-término, nos invade esse mesmo tipo de sentimento. Acho que vazio é nome mais apropriado, se é que existem nomes ou palavras apropriadas para os sentimentos. Aliás, curiosa é essa mania do ser humano de tentar entender e explicar os sentimentos. Mas seja lá o que for que nos faz tentar entender-los é a mesma coisa que nos faz senti-los. E ainda a mesma coisa que nos faz sentir isso nos dias de chuva.

Os sentimentos são a mais honesta das capacidades humanas. A fala, a escrita, o olhar, os gestos, todos esses são manipuláveis. Sempre podemos expressar através deles o que não nos passa pela cabeça, mas que nos parece mais apropriado ou desejável à situação. Mas com os sentimentos não. Pois só nós mesmos os sentimos, só nós sabemos o que realmente se passa no que comumente chamamos de coração. E é por isso que dizer para não dar ouvidos aos sentimentos é pior coisa que alguém pode fazer a si mesmo. Pois, justamente no único lugar que você realmente é honesto consigo, quer você queira ou não, você irá desconsiderar.

Talvez esse dito seja fruto do nosso costume de fugir de nós mesmos. Do costume de sempre jogarmos a poeira pra baixo do tapete, empurrar as coisas com a barriga, ao invés de encarar a realidade. Ao invés de encarar a si mesmo de forma honesta, nu, como viemos ao mundo. De tentar resolver o mais real de nossos problemas, que é o de como nos sentimos. Olhar-se de forma sincera, como realmente me sinto, é tarefa árdua escolhida por muitos poucos. A grande maioria prefere se deixar levar pelo que chamamos de ‘vida normal’, do que os outros acham, do que é ‘comum’. Resolver problemas práticos do tipo, trabalho, família, carro, etc. Sempre achamos que isso é real e primordial e que nós mesmos, como nos sentimos, como nos vemos, é bobagem e que pode ser resolvida em outro momento. Momento esse, que em geral só ocorre quando a situação fica crítica e acabamos por nos sentar na frente de um psicólogo. Pagamos (e caro) para termos um tempo conosco, para nos olharmos. Por que esperar tanto? Por que pagar para isso? Por que não resolver que a partir de agora eu sou minha prioridade. Que a partir de agora vou ter tempo pra mim mesmo e não vou continuar fugindo, tentando me esconder de mim mesmo.

Mas essa escolha requer maturidade. E para crescer psicologicamente é preciso estar disposto a enfrentar esta longa estrada, com todas suas pedras no caminho. Mas junto com as pedras, vêm também as belas vistas e a certeza de que se está caminhando pra frente, sabendo para onde se vai e não apenas vivendo e deixando a vida te levar. E desta forma, não se chega a tão famosa crise da meia idade, quando em geral as pessoas param e percebem que sempre seguiram sem saber direito para onde e que não sabem se o que conseguiram realizar é válido e começam a questionar qual o sentido disso tudo. Essa crise ocorre por volta dos 40 anos, pois é quando ocorre a sobrecarga do sistema. São tantos anos botando a poeira pra baixo do tapete que não há mais como esconder, os amontoados de sujeira começa a aparecer como pequenos relevos e a pessoa não consegue mais fugir deles. Mas quando chega nesse estágio, é tanta coisa a resolver, que nem sabe por onde começar, de onde vem isso tudo e o que se passa.

E sem escolher dar os primeiros passos nessa estrada, os sentimentos, que inicialmente (quando jovem) eram totalmente honestos, podem deixar de sê-lo. Pois com o passar o tempo e com o acumular das experiências que não foram devidamente analisadas e processadas o sentimento sincero que surge em nós é quase que instantaneamente encoberto por nossas reações. Quando o sentimento surge, nossa mente o relaciona a alguma experiência marcante anterior e ao invés de vivenciar o que está se passando naquele momento, você simplesmente reage de acordo com a situação passada. Por exemplo, na sua infância seu pai sempre te cobrou muito por resultados, por ser o melhor. Você se sentia inseguro com aquela situação, não se sentia confortável. E então quando começa a trabalhar e seu chefe te cobra por resultados ou questiona alguma tarefa que você entregou, ao invés de você olhar para a situação atual com objetividade, você olha para a situação com os olhos da criança que odiava ser pressionada pelo pai e então você reage. Sai da sala do chefe falando pra todo mundo que ele é um carrasco, que não acha que nada está suficientemente bom, fica bravo. E acaba por não ver que realmente uma parte importante do relatório estava faltando e que o chefe só pediu para que você completasse.

E é aqui que começam os maiores problemas, pois começamos a confundir tudo e carregar as coisas para os alvos errados. Descontamos em que não tem nada a ver com o problema, distorcemos os fatos e lentamente vamos ficando cegos. No exemplo citado a pessoa chega em casa e reclama da casa desarrumada, que a mulher não cuida direito, só porque está bravo com o chefe. E tudo porque ele continua carregando aquela criança que odiava ser cobrada pelo pai dentro de si, sem perceber. E desta forma, deixamos de viver o mundo como ele se apresenta para nós e passamos a viver num eterno desenrolar de um filme que já vimos antes e não gostamos. E é assim que vamos criando nossas personalidades, que não passam de um conjunto de reações pré-concebidas e aceitas como parte da minha pessoa.

Mas não se preocupe, isso não é exclusividade sua ou minha. O mais interessante é que todo esse processo psicológico que ocorre em nossas mentes existe devido a mesma causa que nos faz sentir os sentimentos, buscar explicá-los e que nos faz sentir o vazio nos dias de chuva. Tudo que existe neste mundo tem seus motivos e utilidade. Cabe a nós observar atentamente e tentar entende-los, tentar aprender com nossas próprias vidas, ao invés de ficarmos preso em nosso próprio labirinto psicológico. E os sentimentos, junto com a capacidade a análise, são as ferramentas mais adequadas para acharmos a saída desse labirinto. Olhar sinceramente para si mesmo, para o que você está sentindo naquele momento, sem trazer todo seu passado junto, sem carregar tanta bagagem. Olhar o que você sente e antes de reagir, tentar ver que reação é essa, de onde ela vem e por quê. E com o tempo, entendendo suas próprias reações você vai criando espaço para poder viver o presente, viver os fatos como se apresentam e não como você os vê pelas suas próprias lentes. E isso é ser maduro.

Mas isso tudo são algumas idéias que me ocorreram durante mais um dia de chuva, onde resolvi mergulhar nesse sentimento de vazio enquanto espero a chuva passar pra ir surfar...

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