domingo, 28 de julho de 2013

Passagem das Horas (de Fernando Pessoa)


(Trechos do poema de Fernando Pessoa)

"Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que não se pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.

(...)

Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei...
Vi mais paisagens do que aquelas que pus os olhos...
Experimentei mais sensações o que todas as sensações que senti,
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir
E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.
(...)

Não sei se a vida é pouco ou demais pra mim.
Não sei se sinto demais ou de menos, não sei
Se me falta escrúpulo espiritual, ponto de apoio na inteligência,
Consanguinidade com o mistérios das coisas, choque
Aos contatos, sangue sob golpes, estremeação de ruídos,
Ou se há outra significação para isto mais cômoda e feliz.

Seja o que for, era melhor não ter nascido,
Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,
A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,
A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair
Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,
E ir selvagem para morte entre árvores e esquecimentos,
Entre tombos. e perigos e ausência de amanhãs,
E tudo isso deveria ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso,
Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida.
Cruzo os braços sobre a mesa, ponho a cabeça sobre os braços,
É preciso querer chorar, mas não sei ir buscar as lágrimas...
Por mais que me esforce por ter um grande pena de mim, não choro,
Tenho a alma rachada sob o indicador curvo que lhe toca...

(...)

Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo,
Mas tudo ou sobrou ou foi pouco - não sei qual - e eu sofri.
Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos,
E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse.
Amei e odiei como toda a gente,
Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo,
E para mim foi sempre a exceção, o choque, a válvula, o espasmo.

(...)

Não sei sentir, não sei ser humano, conviver
De dentro da alma triste com os homens meus irmãos na terra.
Não sei ser útil mesmo sentindo, ser prático, ser quotidiano, ser nítido,
Ter um lugar na vida, ter um destino entre os homens,
Ter uma obra, uma força, uma vontade, uma horta
Uma razão para descansar, uma necessidade de me distrair,
Uma cousa vindo diretamente da natureza para mim.

(...)

Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.

Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo,
Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo,
Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia,
Seja um flor ou uma ideia abstrata,
Seja um multidão ou um modo de compreender Deus.
E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo."

Um comentário:

***** disse...

Oi, Você,

Gostei muito do poema.

Obrigada pela transcrição.

Com carinho,

Eu